Salvo pelo Combadge

| por Zildo Zukovyper Valhares (edição e revisão: Waldomiro Vitorino)

Star Trek já há muitas décadas existe na cultura pop como a grande cebola da ficção científica: repleta de múltiplas camadas, e ocasionalmente nos faz chorar. Muito desse apelo emocional entregue pelos enredos tem origem nos dramas, conflitos e discussões que as séries corajosamente se atrevem a nos levar, de modo análogo às viagens que suas naves nos carregam em meio à exploração espacial e descoberta de novos mundos.

Vivemos em uma época de muita polarização de opiniões, em que discussões com desconhecidos na internet às vezes se tornam tão acaloradas quanto a rotina numa nave Klingon. Mas em retrospecto, muitos episódios de Star Trek (e aqui em especial, a era que compreende TNG, DS9 e VOY)  já há mais de duas décadas faziam, de modo inteligente e instigante, contrapontos e discussões que desafiavam o repertório de conceitos éticos e morais da audiência, o que sem dúvida levou à formação do caráter de muitos da minha geração e das futuras.

Mas o ponto que me chamou a atenção em vários episódios, foi a constante e providencial ocorrência do que eu chamo de “combadge salvador”. Eu explico: em múltiplas situações, dois personagens estão numa corrente de argumentações contrárias. Frequentemente são situações em que a moral e o bom senso se contrapõem a uma lei que não deve ser descumprida, ou casos em que o background de um personagem entra em conflito com uma situação moralmente duvidosa. Em geral, o diálogo da discussão é construído de modo em que, mesmo que os dois lados mantenham-se respeitosamente discordando um do outro, há um crescente de tensão entre as duas partes até beirar o insustentável. Neste milagroso instante, invariavelmente o som do comunicador-insígnia de lapela (ou combadge) irá tocar, interrompendo a discussão antes de seu improvável desfecho, atraindo um ou os dois personagens para outra área da nave onde um problema maior está ocorrendo.

E por que isso acontece? “Covardia”, diria o leitor Klingon. “Sabedoria”, diria o Vulcano. “Dissimulação”, diria um Romulano. Morn diria… muitas coisas. Mas se for pra dar uma opinião, eu diria que o objetivo de quem contou a história era plantar na nossa mente a importância da discussão sobre determinado assunto, antes do que querer assumir um lado ou dar uma diretriz do que é certo ou errado. Talvez até gerar, através do exemplo, o ensinamento de que discutir temas polêmicos com o devido respeito ao lado oposto e com o adequado embasamento científico-argumentativo é construtivo para nós como pessoas.

Vamos a um exemplo. No episódio 7 da quarta temporada de TNG, “Reunion”, Worf é confrontado pela bela K’Ehleyr sobre como seu banimento do império Klingon afetaria seu relacionamento com seu filho Alexander. Quando a discussão alcança seu ápice, Worf é literalmente salvo pelo gongo de seu combadge antes que tenha tempo de responder algo que provavelmente traria complicações futuras. E eu desafio você leitor trekker a encontrar essas ocorrências em cada episódio em que assistir, e ao se deparar com o evento, pausar o episódio e refletir: “por que essa discussão em especial foi interrompida nesse instante?”

De modo análogo, a TOS usava outros artifícios para gerar o mesmo efeito: às vezes durante um episódio, quando algum personagem chegava num momento crítico do enredo, ele interrompia a ação/discussão e olhava a esmo, como que a demonstrar que parava para refletir sobre um impasse, ao que era imediatamente seguido por uma interrupção da cena em “fade out” para um intervalo comercial.

Me espanta até certo modo que esse artifício de interrupção de diálogo não tenha virado meme até hoje. Talvez estejamos necessitando de um “combadge salvador” na vida real, algo que nos faça refletir e repensar nossas posições.


Zildo Zukovyper Valhares    


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