CRISE NO SETOR 001

Dominion attack on Earth

| por Roberta Manaa (edição e revisão: Waldomiro Vitorino)

As notícias do Setor 001 não têm sido boas nesta data estelar. Me refiro a ataques terroristas e à tal jihad. Entre tantas coisas ruins saindo do autofalante do meu rádio (me julguem, ouço rádio), lembrei dos krikkiters, uma raça do Guia dos Mochileiros das Galáxias. A história é assim: esse pessoal vivia em um planeta cercado por uma nuvem de poeira e acreditava que o mundo era só deles. Sequer sabiam que existia o “lá fora” até uma nave se espatifar em Krikkit. Nesse momento descobriram que tem vida do outro lado e, não suportando a ideia de coexistir com seres diferentes, iniciaram uma guerra contra o Universo. Sinto que há krikkiters demais nesses dias.

Divagações à parte, meu assunto é Jornada. Esses ataques terroristas, a resposta aos ataques e todo o debate que eles geraram me fizeram lembrar muitos episódios. Um deles foi o “Paradise Lost” (DS9 S04E12), no qual o changeling fala sobre o trunfo que os Dominion têm sobre a Federação: “Nós não tememos vocês tanto quanto vocês nos temem. No fim, é o medo que destruirá vocês”. Sisko conclui o episódio dizendo que “Se os changelings querem destruir o que construímos, eles terão que fazê-lo. Nós não destruiremos por eles”. Para quem viu as cenas de polícia armada para guerra nas calmas ruas de Bruxelas, isso diz muito.

Trago um breve diário de bordo para quem andava no quadrante Gamma sem amplificadores subespaciais (o que me parece uma má ideia): após os ataques a Paris, os bombardeios ao autointitulado Estado Islâmico foram intensificados. Me sinto dividida quanto à resposta correta à barbárie. Muitos dizem que responder violência com mais violência não soluciona. A pacifista que vive em mim concorda. Mas a consequência da política da não-violência implicaria em esperar. Esperar que as populações dominadas por estados brutais e regimes totalitários – pessoas que não têm meios materiais e que não têm esperança de viver sem sofrimento, pois sequer têm ideia de que uma vida diferente é possível – esperar que estas populações, por milagre, acordem e se livrem de seus opressores. Isso é realista? Quantas torturas, estupros, mortes, casamentos forçados – inclusive de meninas de até nove anos, crianças ensinadas a desdenhar o humano e a brutalizar quem reza diferente, quantas gerações perdidas, quanto sofrimento até esse momento mágico? Acho relevante lembrar aqui que toda a bagunça síria começou bem assim: a população sendo chacoalhada pela Primavera Árabe e tentando se livrar de um ditador de longa data, Bashar al-Assad. A tentativa foi rapidamente reprimida com tiros, parte da população não desistiu, a revolta escalou para guerra com muitas e muitas facções – sem ajuda do mundo ocidental porque a Rússia e a China barraram a resolução do Conselho de Segurança da ONU para ajudar – e o autointitulado Estado Islâmico aproveitou o desmando para crescer, tomar conta de poços de petróleo, ruínas e museus, cidades. Fez dinheiro e virou esse monstro aí. E agora a Rússia ajuda a lutar contra esses caras do EI. Tudo errado.

Isso nos possibilita falar na Primeira Diretriz, sobre a qual Waldomiro e eu já conversamos longamente neste podcast: SEÇÃO 31 Intercom #15 – Voyager e a Primeira Diretriz – Parte 1. É legal deixar os oprimidos sendo oprimidos porque “no país/planeta deles é assim mesmo”? Qual forma de envolvimento é digna? Armar o lado que achamos ser o mais correto? Ou não armar, sabendo que dinheiro e armas estão chegando para o outro lado? Dilema antigo visto no “A Private Little War” (TOS S02E16). A inação não é uma maneira condenável de permitir um desfecho evitável? Segundo Peter Singer, sim. Se você tem o poder de evitar um acontecimento ruim e não faz nada, você é responsável, segundo o filósofo. Faz sentido pra mim. Então o negócio é estabelecer a Primeira Diretriz do “danem-se eles” ou ter pessoas no comando com bom senso para definir o melhor curso de ação em cada situação? Voto no segundo. Bem, no final das contas o que acaba acontecendo na maioria das vezes é que nossos capitães queridos jogam a Primeira Diretriz pelo airlock e fazem o que acham certo. E aí vem o senhor Eddington jogar na cara do Sisko que a Federação, insidiosa como uma root beer, também assimila outras culturas. Resumo: sempre vai ter alguém pra reclamar.

Nietzsche dizia que por trás de tudo o que é efêmero existe, intrínseco aos seres – inclusive aos humanos –, o desejo de poder, o desejo de competir para demonstrar sua superioridade sobre o outro. No século 24 parece que esse desejo foi superado pelos terráqueos que criaram, com ajuda de tantas outras raças, a Federação, cujo objetivo é a exploração. Louvável. Porém, quando eu via episódios nos quais uma nave federada quase perecia para uma romulana, me pegava pensando sobre a besteira de sair por aí explorando a Galáxia com poder de fogo risível quando comparado ao de raças beligerantes – justamente aquelas que dão um dedo para entrar numa briga. Aliás, Scott Bakula admitiu que a ideia de sair da doca espacial com meia dúzia de torpedos não foi feliz, pois para muitas outras raças, o desejo de poder segue intacto.

Como lidar com situações nas quais a argumentação e a manobra Corbomite não funcionam segue sendo um debate. Interessante pensar sob o ponto de vista da evolução: as árvores gastam muita energia para construir o caule. Se todas pudessem combinar de crescer até uma altura, nenhuma teria que gastar tanta energia para crescer mais e pegar mais sol e todas poderiam gastar seus recursos, por exemplo, para ter um caule mais resistente a ventos. Mas se uma burlasse o pacto, as demais também teriam que crescer mais e a cooperação iria para o espaço. Se todos acordássemos que educar, cultivar o espírito e curar são objetivos mais nobres do que matar pessoas, poderíamos direcionar o orçamento gigante da defesa para educação, pesquisa, cultura e tratamentos. O fato maluco é que no Planeta Terra sequer há uma tentativa de pacto nesse sentido. Veja bem, até as armas nucleares, considerada por todos os seres racionais como uma péssima ideia, ainda são “necessárias” para proteger o mundo de eventuais doidos suicidas. Bons tempos aqueles em que Zefram Cochrane usará um míssil para explorar o sistema solar…

“Sobreviver não é o bastante”. Janeway nos dá aulas de como manter os princípios que nos guiam, mesmo em situações aparentemente sem esperança. As crises são bons momentos para rever nossas atitudes e, se for o caso, de mudar o rumo. Talvez eu seja excessivamente otimista, mas pode ser que estejamos vivendo um momento pivotal para a humanidade. Um daqueles nos quais a ficção nos ajuda a repensar a vida que esperamos para as gerações futuras. Que nossa referência seja Jornada nas Estrelas ao invés de The Walking Dead.


    Roberta Manaa         Manaa_WEB

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